João ouve o som agudo do despertador às seis da manhã, abre os olhos e esfrega-os com as duas mãos. Depois levanta devagar e vai até o banheiro arrastando os pés no chão. Então se troca, liga a maquininha de fazer café e assiste enquanto ela faz um zumbido meio eletrônico e meio mecânico para depositar o café na xicara. Abre um pão macio feito em casa e passa uma camada fina de manteiga. Ele se delicia.
Depois de forrar o estômago,
põe o paletó e pega a pasta preta cheia de papel. Sai pela porta da frente,
entra em seu carro e segue para o trabalho. Sua sala confortável, com uma mesa
de vidro, cadeiras acolchoadas e pouca coisa disposta em pilhas. Apenas alguns
livros e panfletos. Num dos cantos havia um divã, uma poltrona e um sofá
grande.
Seu primeiro treco entra,
sério e mancando de uma perna. Alto, imponente, com os cabelos brancos e as
rugas evidentes. Senta-se no sofá grande e espera João sentar-se na sua frente
para começar a falar. Transbordando sua ansiedade, despejando os vários
problemas, Sua empresa será vendida. Estão mandando ele se aposentar. Mas ainda
tem uma grande dívida, que talvez não consiga pagar. E enquanto fala sua voz
treme. Treme as mãos. Treme o corpo. Mas João nunca treme.
Depois de duas horas entra
uma sucata, toda elegante e rebuscada. Com um coque no topo da cabeça, a mulher
desliza até o sofá e senta-se bem devagar. E demora um pouco pra conversa
começar. A mulher que já era toda esticada, diz que quer fazer mais uma
plástica. "Eu não quero envelhecer!". João balança a cabeça e pensa
"Eu só não quero enlouquecer".
Depois de umas três horas,
eis que entra uma peça nova. Com roupas de couro e óculos de sol. Um palito
entre os dentes e um ar muito descontente. O som de seus passos era abafado.
Sentou-se primeiro e esperou João sentar-se, então falou que estava num
empasse. Cantou as canções dos homens que morrem, os que batem no peito e vão
pro ataque. Falou das guerras por onde andou. E como um dia abandonou um cão no
deserto em meio ao horror. João sentiu o peito pesado ao olhar os olhos
vermelhos por falta de amor.
No fim do dia João
levantou-se de sua cadeira como se um peso enorme lhe puxasse para baixo. Guardou
suas anotações. Pegou sua pasta, apagou as luzes e fechou a porta atrás de si.
Foi andando com calma até seu carro. Com um pouco de dúvida quanto ao destino.
Ao chegar em casa,
despiu-se, olhou-se no espelho e viu tudo que que ouvira o dia inteiro nas
linhas do seu rosto e em seus olhos vermelhos. Carregava o peso de um mundo
inteiro. Colocou um moletom velho e todo manchado. Sentia que sua mente estava
num tempo nublado. Desceu até o porão de sua casa, acendeu a luz e revelou uma
zona. Tudo estava sujo e bagunçado. Ele abriu um armário e pegou um tecido,
esticou-o num varal e prendeu as quatro pontas. Em seguida foi à uma gaveta e
pegou algumas bexigas recheadas com um liquido colorido. Despejou ali tudo o
que trazia consigo.
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