MONSTRO DA NOITE NUA

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Era noite escura e sem estrelas e sem uma. Uma noite nua. Despida de toda beleza estava ela assim oca. Uma noite vazia de barulhos e sem vida. Eu descia pela estrada de terra em busca de alguma luz que me guiasse pela ladeira abaixo, me deixando levar pela intuição dos pés que já conheciam o caminho a ser percorrido. Apesar de a noite ser estranha a vila era sempre a mesma. Vazia de luzes à noite, as pessoas silenciosas respeitando a hora da noite. Era a terceira vez que fazia esse percurso à noite. Da primeira vez fiquei até tarde no escritório corrigindo o balanço contábil do Jorge Leiteiro que estava todo errado. Em cima da hora o velho pediu para “da uma olhadinha”. Essa olhadinha nunca é rápida. Tudo errado e lá vou eu consertar. Na segunda cheguei no ponto de ônibus com um minuto de atrasado e a condução já estava lotada e engatando a primeira. O motorista bem que podia ter esperado. Agora, sigo caminhando sozinha na noite porque me recusei a pegar carona com o Zé do Litrão. Ele faz entregas para o Jorge Leiteiro nas casas da vila e leva as encomendas para a cidade. Um homem cheio de tranças nos cabelos cumpridos e volumosos que tem um sorriso grande e rasgado.
Me arrependi de ter calçado as sapatilhas que agora deixavam sua marca em meu calcanhar, me fazendo andar cada vez mais devagar. Minha casa, no canto diagonal à direita da vila, fica em um prédio tombado e amarelado. No terceiro andar com vista para as montanhas. É um ugar aconchegante, apertado e decorado do meu jeito. Um lugar tranquilo. Uma das vantagens de morar dentro do mato. As pessoas não ficam empoleiradas umas nas casas das outras porque já mora todo mundo meio que junto de qualquer forma. Tem tudo ao alcance. Hortas, padaria, fazendas de grãos e leguminosas. Tem sempre uma senhora costureira e uma curandeira. A desvantagem? É no meio do mato. Longe da civilização estamos a mercê das criaturas da mata. Dos monstros da noite como o que me encara exatamente agora. Um ser da altura de um homem, com pele tão branca como a luz, refletindo a luz que não há na noite nua. O monstro tem pelos cumpridos por todo o corpo, braços alongados, olhos vermelhos como sangue, dentes saltados para fora da boca entreaberta. Respira suavemente com os olhos demoníacos fixados em mim.
Estou congelada pelo frio da noite e pelo medo que nem sabia que tinha d própria noite. Não há sinal de vida em lugar nenhum e o monstro não demonstra que vai atacar tão cedo. Ficamos assim, encarando-nos. Eu apreensiva com o monstro e ele a espera que eu me mova para algum lugar. O monstro está entre meu destino e eu, bloqueando a ladeira que eu preciso descer para chegar à vila. Me lembrei de todas as histórias que ouvi do monstro da noite nua. Um ser tão vazio de vida que persegue os viajantes noturnos para torna-los como ele. Um ser capaz de destruir um ser humano com uma olhada brutal e ensanguentada. Um ser que congela os músculos de quem está acostumado a andar sem parar pela vida afora. Um ser que não age, apenas reage e apavora. Este ser me encarou na noite nua e eu fiquei sem saber o qeu fazer.
Como todas as criaturas amedrontadas na terra eu me pus a correr. Corri pelo mato na direção contrária a que deveria seguir. Indo de encontro ao que nem sabia o que. Pulei por cima do pântano cheio de sapos silenciosos imóveis sob o olhar do monstro. Corri o mais rápido que pude. Avancei pela floresta adentro, através de árvores que o homem nunca tocou e fui além. Entrei na vila dos monstros, como a presa tola que sou. Vi outros monstros, não tão assustadores quanto o primeiro, mas com ele ainda no meu encalço. Correndo tão rápido quanto eu. Me movi por entre as pedras de uma caverna e fiquei ali por um tempo que não sei definir quanto. Não me lembro para onde foi o monstro. Talvez ele me tivesse exatamente onde queria e por isso deixou de me perseguir. Mas não arrisquei sair até que vi a luz vinda de fora da caverna. Vozes humanas me despertaram de um sono que nem havia visto chegar.
Um dos homens que me acordou parecia um professor, com jaleco e óculos de armação grossa. Tinha um olhar curioso. O outro era velho e trazia uma picareta ao lado do corpo. Olhei em volta do meu próprio corpo e vi que estava quase que coberta de terra, minhas roupas encardidas num tom avermelhado de barro. Eles falavam comigo mas não pude entender. Falavam outra língua. Um idioma estranho. Me ajudaram a me levantar e tentei contar o apuro da noite anterior, mas não me entenderam. Deviam ser estrangeiros. Estava muito cansada e me ajudaram a caminhar para fora da caverna. Do lado de fora um pequeno grupo de curiosos observava o meu resgate. Olhei em suas faces e vi figuras estranhas, humanos desprovidos de sentimentos, com feições lisas. Olhos estalados e bocas em um formato de risco. Não dava para saber se tristes ou alegres. Cabelos lisos e negros escorridos atrás das orelhas amarelas como a pele. Os homens que me puxavam pelo braço pareciam preocupados. Olhei mais uma vez para aquelas pessoas e para aquele lugar perdido no meio do mato e foi quando vi. Lá estava o monstro outra vez. Escondido entre as folhagens num canto escuro. Gritei para os homens olharem. Ele estava lá. Eles não viram. Eles não viram o monstro escondido nas folhagens. Eles não viram o monstro olhar para mim com os olhos vermelhos. Não o viram sorrir com dentes pontiagudos e brancos como seu pelo. Eles não viram...

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