Ela estava lá sentada de frente para a janela, com o rosto iluminado pela luz diurna de verão. O movimento do lado de fora era mínimo, ela pensara nisso antes, o dia era calmo e tranquilo. Poderiam conversar discretamente sem serem surpreendidos por algum curioso que os pudesse interromper. Ele sentava-se de frente para ela, era impossível ver-lhe o rosto com clareza por causa da luz vinda do exterior. Mas ela se lembrava muito bem daquela fisionomia. Queixo largo, beiços fartos, a pele negra e os dentes brancos. O rosto redondo delineado pelas sombras. Ela admirara aquele rosto por anos e anos sem se cansar. Agora ele estava ali, em sua frente, sorrindo um riso que encheu o ar.
Foi preciso muito planejamento para conseguir tê-lo ali agora, com as mãos sobre a mesa, ao lado do bule de chá preto temperado especialmente para ele. Ela estava realizando seu sonho de tê-lo. Tê-lo apenas e só para ela pela primeira vez na vida. Foram anos de perseguição, de simpatias e oração. Quantas vezes desperdiçou sua feitiçaria com aquele homem pensando que à ele cabia satisfazer suas fantasias.
Mas ele estava feliz. Feliz sem ela. Tinha esposa e duas filhas lindas. Vivia agora na capital, seu sonho desde menino, ela se lembra. Sempre que iam brincar juntos no terreiro da avó ele dizia: "eu vou morar na capitão. Vou ter minha empresa e vou ganhar muito dinheiro". De fato, ele alcançou seus objetivos. Casou-se com uma alemã, branquíssima, de olhos azuis e com família bem de vida. Conseguiu o apoio do sogro e depois vieram as duas marronzinhas - que era como eles chamavam as meninas.
E ela havia planejado tudo desde muito antes de ele vir à cidade. Preparou a poção, dosou as medidas, deu ao cachorro primeiro, depois ao mendigo que morava em sua calçada. Tudo pronto para quando ele voltasse para a cidade e pudesse ser só dela. Mas ele voltou mais bonito, bem vestido, sorrindo e feliz. Ele voltou feliz. E falava sem parar de sua felicidade. Ela já não podia fazer aquilo com o homem feliz. Feliz como estava era uma afronta. Poderia não dar certo. Poderia dar tão certo que daria errado. Não era como ela queria. Não era o que ela queria. Não queria mais fazer aquilo. O chá já na xícara. A mão dele no pires. O sorriso dele preenchendo o ar. Ele sorria e respirava devagar. Respirava ao falar. Ele respirava. Feliz. Sorria. Feliz.
Ele provou o chá. Quente. Queimou. Não deu pra engolir. Ela se adiantou. Levou a mão para ajudar. Ele recusou. Vai esperar esfriar. Enquanto isso, conversa. E sorri. Um sorriso que enche o ar. Ela engoliu o ar. Engoliu o sorriso. Engoliu o arrependimento amargo da poção que ele não engoliu. Por que ele não bebe logo? Por que não se rende e engole tudo de uma vez? Ela não quer admitir. Dizer que errou, que se enganou, que preferia que ele fosse infeliz como ela era. Mas ele sorriu um riso que a fez amolecer. Ele sorria e falava das coisas que via na capital. Falava das maravilhas que fazia como empresário. O sonho realizado. Outra vez a mão na xícara, a mão na mesa, a mão no pires. Ainda está quente. Conversa mais. O telefone toca. Ela pensa em tirar o chá. Dizer que esfriou demais. Dizer que não está bom. Que ele não deve tomar. Que ela se arrependeu de ter-lhe feito o convite. Que ele não deveria ter voltado. Que estava tudo acabado.
Pede desculpas. Ligação importante. Ele é empresário. Ela não é nada. Ela é uma bruxa amarga. Ela é uma mulher desalmada. Uma infeliz. E ele ainda sorri. Muito feliz. As marronzinhas mandaram uma foto. São lindas. Estão com a alemã. Estão na mansão da família na capital. Para onde ele fora sozinho, deixando tudo para trás. Ele nunca pensou em voltar. Ele nunca pensou em ligar. Estava ocupado. Vida de empresário. Poderia ter ligado. Poderia ter visitado. Poderia ter se lembrado das várias noites em claro, debaixo da mangueira, chupando mangas. Chupando. Chupando. Chupando mangas. Mas ele não se lembrou. Não lembrou de nada. Não visitou. Não telefonou. Talvez ele mereça. Talvez ele mereça.
O chá esfriou...
Adeus...
Adeus.
Ele não pode ficar.
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